sábado, março 20, 2004

Maria havia finalmente encontrado o seu alguém, um rapaz pouco mais velho e mais alto que ela, chamado Antonio. Ele tinha a curiosidade de ser natural do Mato Grosso e descendente de irlandeses ao mesmo tempo, e era arquiteto feito Maria. Pela arquitetura puderam se conhecer, pois trabalhavam no mesmo escritório e participavam do mesmo happy hour, e num deles particularmente animado, Maria beijou Antonio que beijou Maria.

Maria, que só conhecia o Mato Grosso por conta da novela Pantanal e de inúmeras edições do Globo Repórter, reparou que ele havia a beijado de olhos fechados. Ela vai negar com todas as forças, mas enquanto autor eu posso afirmar que foi ali que ela se apaixonou por aquele parente distante dos celtas. Achou bonito o beijo dele, como ele parecia tão dela, tão frágil. No dia seguinte, contou para a sua irmã caçula ao telefone, mas a caçula disse que beijar de olhos fechados era bobagem, e que ninguém se apaixonava por aquilo. Maria se apaixonou, e sua irmã desligou que precisava correr pro curso de inglês.

Antonio percebeu logo que Maria estava fisgada, que ele não era bobo nem nada. Após o beijo ela já lhe sorria outra, e então beijaram mais. Foi neste segundo beijo que Antonio reparou que ela também fechava os olhos para ele, e o próprio beijo ganhou outra visão. Ele lembrou que sua última namorada nunca fechava os olhos com ele, nem no sexo, como se não acreditasse nele ou sempre precisasse vigiá-lo. Maria acreditava nele, se colocava em seus braços e se deixava beijar. Daí, vejam só, se apaixonaram num beijo, não é bonito?

Maria e Antonio apaixonados, resolveram juntar suas coisas num mesmo armário, ou em dois talvez, mas no mesmo quarto. Vocês precisavam ter visto as lágrimas de Maria quando Antonio sugeriu que eles deveriam dividir cama, teto e escova de dentes. Encontraram um apartamento agradável sem muita demora. Maria e Antonio precisaram então, cada qual em seu canto, arrumar suas coisas. Cartas e fotos e dedicatórias tornaram a passar por suas memórias. Eu, autêntico manteigão, sempre tive um fraco por lembranças, nem jornal velho consigo jogar fora, o que dirá as letras, rasuras, marcas de batom e até sorrisos de gente que um dia foi querida e depois virou distância. Maria levou mais tempo que Antonio arrumando o seu passado. Exumou algumas partes, outras encaixotou e depois precisou de um cigarro e meia hora sossegada. Antonio era mais prático, sempre escolhia a melhor lembrança de uma pessoa e jogava o restante fora depois de um tempo. Só precisou arranjar suas desventuras em um par de envelopes e depois pôde tratar do presente.

Era sábado quase noite e resolveram começar a mudança. Ele passaria de carro e ajudaria a arrumar as coisas todas. Maria havia encontrado Antonio que havia encontrado Maria no fechar dos olhos durante um beijo. Tratariam de preencher o presente com outras letras; o passado já era lembrança neles dois.