A lâmina corroeu a carne do pobre homem e ele gritou um nome de mulher. Valéria. Fez-se súbito o silêncio, entrecortado por gotas de sangue enferrujado que alcançavam o chão e pelos soluços que nasceram nas mãos laminadas da mulher. Teria sido menos doloroso se ela tivesse sido batizada Valéria? Por que aquele diabo não poderia amar uma Regina, mas sim uma Valéria?
Ele tremia e suava. Não piscava os olhos, não respirava. Só conseguia sangrar. O riso dela invadiu o cômodo e escapou pelas janelas, se misturando às pessoas e verduras na feira. Ele sentiu um engulho na barriga, julgou que iria desmaiar mas não queria dar esse gostinho para Regina, não era um frangote no matadouro. Fechou os olhos e se pôs a pensar em Valéria, poderia tentar soletrar o nome dela ao contrário, airelav, airelav nada significava. Regina nada entenderia e pensaria que ele estava de sacanagem com a cara dela e daria de ombros.
Regina acendeu um cigarro e passou a olhar seus olhos com um rosto ainda inédito. Um rosto de pedra, via-se que estava fazendo algo mais do que simplesmente encarar o homem. A fumaça deslizava queimando de tesão entre seus dentes. A navalha ainda pendia de sua mão direita, calada, em alerta, gotejando rubra. Ele tentava gritar por Valéria, mas o medo de Regina, e agora sentia muito medo dela, estrangulava sua laringe. Ouvia os gritos vindo da feira que começava a encorpar junto com o sol. Respirava couves e abobrinhas, corria entre as barracas, roubava um beijo da menina que vendia aquele caldo de cana sagaz. Tropeçava e Regina o fatiava feito um filé de namorado.
Sentiu o tapa gritar-lhe o nome na orelha. A mulher a sua frente estava ouriçada, não fosse ele estar com as mãos atadas dentro daquele cômodo obscuro e ela com a navalha sangrando em punho a fumar e o olhar perigosamente, pensaria que estava diante da melhor trepada de sua vida. Ela estava quente, ele gelava. O tapa lhe voltou a memória e percebeu que ela perguntava por que Valéria. Respondeu corajosamente que Valéria era tudo o que a vida poderia oferecer a ele, homem em todos os seus defeitos, uma mulher de verdade. Dito isso, suspirou um fardo e gritou, que Regina o queimava com a bagana em seu peito nu e suado de medo.
Lembrou de seu tio num aniversário de casamento em família, o homem o aconselhou num tom de voz que lembrava uísque nacional “nunca provoque uma mulher a não ser que você esteja armado”. Na hora ele chegou a rir mas viu o rosto do tio digno, apesar de alcoolizado. Podia presenciar o homem recostado na parede com seu uísque nacional cantando vitória para ele, eu não te avisei, rapaz? Regina o conduziria pelo salão de mãos dadas para bailar com ele, deslizaria gostosa, esquentaria o samba. Eu sou um homem velho, Regina. Ele estava cedendo, olhar no chão e as pernas dobradas na cadeira. Eu sou um homem velho e Valéria é o tenho na vida, Regina. Segurava as lágrimas para o regaço de Valéria. Regina não se comovia. Regina o amava e não se comovia diante da ferida aberta a seus olhos.
Regina acendeu outro cigarro e foi olhar a feira na janela. Afastou um pouco as cortinas, um dia quente. Ouvia o seu amante respirar o seu cigarro. Ele jamais iria largar Valéria, dizia, porque era um homem velho. Tinha quarenta anos e se dizia um homem velho. Havia passado horas dentro dela das formas mais sexuais que deviam existir, a revirava do avesso, não poupava nem o caroço e agora se confesava um homem velho destinado apenas ao amor de Valéria, sua esposa havia quinze anos. Ela seria apenas regina, um nome impróprio, um substantivo comum. Viu a uva na mão da vovó, ela estava bonita, suculenta, passaria na feira mais tarde. Iria vencer seu homem pelo cansaço, desabotoou o vestido e se alojou naquele colo, beijou a queimadura, fez juras de amor com os dentes cerrados naquela carne suada.
Valéria, era o que ele respirava, eu amo Valéria. Fez-se o silêncio, apenas a feira lé fora. Eu nunca vou amar você, Regina, porque eu sempre amei Valéria. Então é assim que termina tudo? Nunca houve nada entre nós. Ele se ajoelharia e pediria o perdão de Valéria pelos últimos dois meses de mentiras mal-contadas. Largaria a bebida. A navalha ainda estava lá em Regina. Ela fechou os olhos, lhe beijou a testa e o sangue dos amantes se misturou à feira que invadia aquele cômodo.