Dois buracos e um clown ou Onde foi parar meu sono?
O que mais me incomoda na história que se seguirá é minha outrora certeza, praticamente devoção, de que o Rio de Janeiro é um local seguro e que não se deve, por nada, privar-se de coisas em nome de segurança. Só que tudo mudou e não há meus tradicionais poréns desta vez.
Fui assaltado na noite de sábado por um homem mulato, extremamente nervoso, aparentando ter mais de 30 anos, com um revólver dos grandes numa das mãos. Não tenta nada e passa tudo. Eu distraído, um revólver para dentro do carro e nada mais a fazer a não ser obedecer.
Alguém atirou, alguém tentando me ajudar atirou, algum filho da puta metido a herói atirou. O bandido apontava a arma para dentro do carro e se assustou. Deu um tiro para o alto e correu. Gritei para minha namorada que se abaixasse, que se protegesse e contasse com a sorte, porque a sorte, inexistente na minha razão, nos salvou.
Duas balas acertaram meu carro, uma no pneu dianteiro esquerdo e a outra bem no logo da volkswagen. Foram duas balas, como se cada uma tivesse uma direção, eu e ela, como se cada uma servisse para nos matar, a mim e a ela.
Desde então, três noites passadas, tenho dormido mal. Imagino nós dois atingidos, imagino ela atingida, imagino eu atingido. Imagino minha penitência por estar distraído, por andar com o vidro aberto, por outrora considerar o Rio de Janeiro um local seguro.
Imagino, ainda, o bandido, aquele que começou tudo isto com as ordens para que eu nada tentasse e passasse tudo, imagino ele morto. Lembro de seu nervosismo, de seu rosto sofrido que eu vejo no espelho ao acordar, lembro. Eu me desespero nos pesadelos por sua morte e tento ajudar. Tento salvá-lo. Não consigo culpar o bandido e, talvez, isto esteja tirando meu sono.
Eu sempre falei com todos os clowns dos sinais de trânsito. Raramente contribuía, mas cumprimentava e acenava. Até já apertei a mão de alguns. São todos bandidos, André, sempre disseram muitos de meus amigos conservadores que não conseguiam se acostumar com minhas práticas cristãs. Quando o verdadeiro bandido se aproximou, quando eu o vi de relance, virei-me pensando que fosse um clown, um daqueles que eu admiro e cumprimento.
Eu estou sem dinheiro, companheiro, boa sorte para você. Daquela vez eu não mentiria. Será que foram tantas mentiras que me castigaram? Será que todos me amaldiçoaram porque sabiam que, na verdade, eu sempre tinha alguns centavos que não me fariam falta? O bandido, o vingador dos clowns, nem quis me ouvir e, depois, ainda duvidou. Você não está passando tudo.
E, além de passar a temer os clowns, ainda me pergunto quem atirou e o que teria acontecido se ele tivesse acertado os alvos. Agora vou tentar dormir.