sexta-feira, janeiro 23, 2004

No outro lado do telefone, a voz era desconfiada e um pouco grave. Mal. Quando a voz é grave, o santo desconfia. Alôu? Tremi, e desliguei. Talvez fosse melhor deixar tudo como estava até então, ela do outro lado da linha falando grave e eu com o indicador no gancho do aparelho tremendo fino. Cocei a minha crescente calvície e retornei para o meu café da manhã ainda que já passassem das duas horas da tarde, entre taciturno e preguiçoso, certamente lerdo. Deixei Mick Jagger cantarolar no rádio, de vez quando você pode ter tudo o que você quer; sempre, nem tanto.

Não me censure com o seu olhar a hora em que havia despertado, leve em conta que eu havia encontrado a mulher da minha vida na segunda noite do ano e por obra deste encontro, com direito a sorrisos anônimos, música cubana, kabukis, suor, muito suor e afetos, havia eu ido dormir quando já surgia no horizonte (não no meu, mas deixe isso para lá) o terceiro sol de janeiro. E não esqueça de levar em conta que antes de eu encontrar a mulher da minha vida, eu havia encontrado o meu amigo André e logo após o meu amigo Luis, e nós três encontramos um lugar onde nos pusemos a esvaziar nossos copos denunciando um comportamento censurável para três homens em idade de chefes de família (o que era verdade no caso de André), e não paramos nem quando o nosso garçom, grande figura humana, nos disse que iria fechar aquela bodega, levantem-se, vamos, eis a conta. A última ficou por conta da casa, e, se você sabe como funciona esse esquema de saideira por conta da casa, já deve ter entendido que bebemos deveras.

Na saída do botequim, tropeçando em sílabas esparsas e uns nos outros avistamos com aquela que viria ser a mulher da minha vida, mas então ela era apenas mais uma das argentinas gostosas que esperavam um táxi na esquina do bar. Não sabíamos se eram ou não portenhas, mas as chicas tinham um ar borgiano e estávamos naquele estado de pileque criativo. Em tempo, eram quatro moças, todas bem apessoadas, duas de vestido justo e uma rindo da gente. Nenhuma era argentina. O mais próximo de uma argentina que havia ali era a irmã de uma delas, que se mudara para o Chile faziam três meses. Não descobrimos isso no meio da rua. De algum modo, e não deve ter sido tão complicado, elas convenceram a mim e ao Luis de darmos carona a elas até uma festa perto dali regada a sobras de ano-novo. Eu estava de carro, e mais um péssimo exemplo enquadro nessas linhas ao dirigir embriagado.

Lembrei, era Dora o nome dela, Dora. Vestido rosa, lábios vermelhos, olhos lilases, a mulher da minha vida. Trocamos uns pares de advérbios na festa e em quinze minutos as palavras já eram incômodas nas duas bocas que se mordiam na varanda. O resto você já pode compreender, eu espero. Da varanda alheia fomos, com uma breve escala num elevador cheio de espelhos, para o quarto dela e não pretendo me derramar mais em detalhes íntimos da mulher da minha vida e eu. Basta. Já deu para passar uma idéia básica de como encontrei a mulher da minha vida, agora, sorvendo o último gole de nescau, pensava naquela voz grave no outro lado da linha. Seria ela? Seria eu o sujeito que havia passado aquela noite monstra? Lembrava bem da promeira vez que nossos olhares se cruzaram de propósito e como aquele toque mediado pelo ar-condicionado do meu carro havia sido eloqüente, significando e expressando mais e melhor que todas as linhas acima escritas. Bobo, ela sorriu segundos após e foi quase como se fosse o melhor sexo oral daquela cidade, bobo.

De tudo restou somente o silêncio. Mais silêncio que a quase manhã onde me vesti ao pé de sua cama e ela dormia, anos-luz de mim. Senti-me quase um mestre do universo quando me dei conta que aquele sono nu e plácido digno de uma musa machadiana era uma elegia daquele corpo rosáceo ao meu corpo cansado, e cansado já não estava mais. O leve sorriso que embalsamava seus lilases era eu, e sorri também. Somente a mulher da sua vida pode ser capaz de te fazer um homem mais feliz por dormir bem, eu concluía. Eu me dei conta que havia descoberto o segredo da felicidade e então a voz dela, grave, começou a me soar num tom diferente, brando. Meus parcos cabelos já poderiam cair descansados. E o telefone tocou.

Bobo, soou a voz grave dela ao telefone e até a guitarra de Keith fez silêncio, o restante da minha vida deixara de ser uma bobagem.