sexta-feira, janeiro 16, 2004

Aquele sêmem que escorria em suas mãos era meu, bem eu o sabia. Reconhecia-o como um pai há de distinguir seu próprio rebento na multidão, e ficava pasmo. Como não poderia notar que naquele instante eu era uma coisa incômoda que ela escoaria ralo abaixo por lhe sujar os dedos, as mãos, o pulso?

Você gostou mesmo, hein? Ela me olhava, de joelhos, um sorriso sóbrio, mais que um anjo. Foi até o banheiro, reparei que ela tinha uma pinta no bumbum esquerdo de novo. Sempre esquecia. A cicatriz na coxa direita era maior e mais fácil de lembrar, também era mais bonita. A cicatriz mais bonita que devia existir.

Já havíamos sido namorados quando jovens e coloridos. O tempo nos fez amantes e desbotados. E agora nos acovardávamos no sexo, um sexo cego e por vezes rancoroso. A torrente das horas nos desnudou de virtudes e planos com o passar dos anos em forma de vagalhões, de modo que só nos restara um ao outro. Um dia acabaríamos cedendo e nos deixaríamos naufragar junto com o tempo, mas por ora, nossos corpos se prendiam e observavam os rumos que tudo ia tomando naquela enxurrada sem fim. Ela era o meu refúgio, e me custava menos do que sair com os amigos do trabalho para beber, fumar e cheirar a noite na veia e depois, quase dia, me sentir impotente diante duma desconhecida por mais vinte pratas. A vida havia tornado o riso mais amargo para nós, e ambos não gostávamos de pensar que nós é que havíamos amargurado as cores do mundo. Talvez não houvesse a tal torrente que a tudo arrastava, mas nós é que não sabíamos nadar e flutuar e por isso nos afogávamos em qualquer maré.

Nenhum dos dois puxava muito assunto. Nenhuma referência ao passado, o namoro já havia terminado anos atrás e o nosso caso fora uma estupidez, ainda que uma estupidez adulta. Desconfiava que ambos não seríamos mais capazes de conjugar o amor, pelo menos em nós mesmos. Os corpos não precisavam de luz, só precisavam de um pouco de veneno e dor. Morríamos cúmplices naqueles quartos sem fotos emolduradas e às vezes sem ar-condicionado também. Era o que o nos restava da vida, a morte. Morríamos, pois.

Escutava-a fechar o chuveiro e cantarolar uma dessas músicas de novela. Pela janela via-se o Cristo, a lua e um par de travestis atiçando um policial. Tive vontade de voltar a fumar ao redescobrir meu próprio cheiro invadindo o cenário. Como ela poderia deixar um homem com aquele meu cheiro dentro dela? Ouvi seus passos refrescados e ela se abraçou em minhas costas, nua, quase molhada, mulher.

Tu me amas?, perguntei. Nunca mais, ela me arrancou um pedaço da orelha e ronronou. Era a nossa morte. E eu que escoava ralo adentro.