terça-feira, dezembro 09, 2003

Os olhos acompanhavam o sorteio da loteria na tevê. Ele poderia ganhar vinte e cinco milhões. Era muita grana mesmo pra ele, sem quase nada a perder. Havia faturado os três primeiros números da seqüência e mal podia respirar. Ficaria rico e seria um homem feliz, porque rico. Ariane se casaria com ele rico, homem e feliz. Só precisava fazer o que já havia conseguido, acertar três números. A modelete sorriu e segurou a bolinha que saiu do globo. 32. Putaquipariu. Só mais duas dentro, rumbora, vamolá. 34 e um inacreditável 35. Sentou-se, os olhos murchos, Ariane longe. Estava vinte e cinco milhões de vezes menos homem, menos feliz e menos rico por culpa de duas bolinhas. Ariane em vinte e cinco milhões de braços distantes, ele só. A modelete repetia as dezenas como se desejasse oferecer a cada telespectador seu o melhor sexo oral do planeta e os dois homens de terno que a cercavam, um obeso apresentador de programas de auditório e um fiscal da Caixa confirmavam que o prêmio continuava acumulado, Adalberto não precisava fazer aquela cara de tacho: ganhara algum na quadra e ainda poderia faturar a mão de Ariane no próximo sorteio.

Olhou o relógio na parede e o dia que nublava. Ainda cedo o suficiente para sentar-se na cozinha, ligar o radinho de pilha e esperar Tomás dar as caras para levar o merecido esporro. Bem, não estava tão irritadiço quanto aparentava, os trocados da quadra lhe garantiriam algumas cervejas geladas num futuro próximo. Tomás era um bom parceiro de copo e o sabia escutar. Era seu melhor amigo desde sempre, desde que resolvera ter um melhor amigo Tomás estava sempre presente. Tabelava com ele no futebol e dividia cúmplice estratagemas banguelas e capengas de dominação mundial e até algumas doenças venéreas. Para leigos, eram irmãos pois de tanta conivência acabaram arranjando até semelhanças físicas e trejeitos em comum. Havia na vila onde moravam a estória conhecida de Rebecca - sim, com duplo “c”, um para cada glúteo - mulata que era famosa por três motivos: a nádega esquerda, a nádega direita e a vez que se enfurnara com Tomás dentro da cozinha de sua casa durante um aniversário da mãe da mulata acreditando piamente que Tomás fosse Adalberto, o seu namorado. Quase irmãos, Adalberto assumia o papel do mais velho porque nascera uma semana antes do primogênito e gozava de certos privilégios como decidir qual das duas garotas no baile seria a dele, ter seu copo cheio antes e o melhor deles, o direito de espinafrar Tomás sempre que ele dava algum vacilo na jogada.

Ariane não era mulata mas tinha os seios que sua mãe desejaria na nora que pediu a Deus. Tinha o sorriso sacana, os cabelos ruivos e todos os sentidos de Adalberto desde a puberdade em comum de ambos. O malandro já perdera a conta das perdizes em que dera cabo fantasiando com a sua pequena diabinha. Mesmo Rebecca, que já estava com ele havia um ano, já entrara nesta repartição pública. O problema de Adalberto era que Ariane não tinha a menor intenção de se misturar com seus vizinhos porque, como qualquer gostosa que se preze, tinha plena noção de seu reinado sobre a testosterona local. Queria ficar rica e venderia seu corpo a um bom preço se fosse o caso, e esse era o caso dela. Saíra da vila para o mundo virgem. Virgem, não santa. Sua virgindade fora leiloada entre executivos, diretores de tevê, atores famosos, publicitários premiados em Cannes, desportistas bem patrocinados e até uma apresentadora de telejornal que desembolsou (da conta do esposo) meio milhão de dólares para adentrar na biografia de Ariane, que nunca havia andado de barco, cheirado cocaína e praticado o cunnilingus. Adalberto nunca saberia disso e amava a pequena infame do mesmo modo, talvez até mais pelo iminente sentimento de perda que ela ostentava. Ariane havia ganho um concurso de modelos no início do verão e teria um papel menor na novela das seis graças a seu sucesso entre diretores e atores televisivos. Aparecia nas colunas sociais em vinte e cinco milhões de braços diferentes, então Adalberto decidira arrumar vinte e cinco milhões para mostrar o que era um homem de verdade à Ariane.

Foi Tomás quem o advertiu que a sua Rebecca estava indo pelo mesmo caminho. Ela tá dando prum gringo, mané, se liga. Seria sua grande chance, a Rebecca. Na mesma noite, no mesmo bar, na garrafa seguinte ele expôs seu plano definitivo ao comparsa. Seguinte, Tomás, a gente dá um pau no gringo quando ele aparecer na vila e arrocha uma grana dele, a gente diz que a Rebecca trabalha pra gente e se ele quiser continuar no gingado da negra vai ter que gingar pra gente antes. Foi Tomás quem lembrou que o gringo era coroa e devia ter família. Adalberto tomou um gole e mandou Tomás continuar falando. Se a gente complicar a Rebecca, o cara vai sumir do mapa, sem contar que a Rebecca vai se emputecer contigo. Sei, sei, continua. A gente seqüestra o gringo, pede uma grana preta e se manda daqui. Adalberto já podia sentir o calor de uma Ariane adormecida em seus braços. Estava mesmo feliz por Rebecca ter arrumado aquele gringo montado na grana. Pediu mais uma dose, encheu o copo do caçula primeiro, tu é um gênio, irmãozinho, tu é foda!

Armaram uma emboscada na saída de um motel grã-fino. O gringo, um argentino, tinha a cachorrada de deixar Rebecca (a provável melhor trepada de sua vida) num ponto de ônibus duas esquinas após o motel e dali rumar para sabe-se lá onde. Nem para dar uma caroninha o sujeito se dignava após todas as posições censuradas no Kama Sutra. Adalberto descobrira pelos jornais que ele era amigo de um deputado federal e dono de uma danceteria famosa entre os bacanas. Se bobear o desgraçado havia feito alguma besteira com a minha Ariane. Seu sangue fervia só de ver a camisa da seleção portenha que Tomás usava no futebol. O gringo, obviamente, era bem casado com uma filha de alguém mais importante que ele, e de repente, mais gringo que ele também. Tocaiaram o sujeito assim que ele contornou a primeira esquina longe das vistas de Rebecca. Era madrugada, ninguém por perto, o sangue de Adalberto furioso. ¡Maricón! !Hijo de puta! Chute na cara, pontapé no estômago. ¡Cabrón! ¡Boludo! ¡Covardes, la policia ... chute na cara. La policia nada, rapá. Enfiaram o gringo desorientado no carro deles e Adalberto partiu de volta para a vila feliz por ter ofendido o hermano na lengua natal dele. O carro do argentino fora abandonado num matagal longe dali por Tomás, que ateou fogo na charanga para garantir. Não pediram os vinte e cinco milhões, mas exigiram da família do gringo um seguro milhão de reais e nada de polícia na conversa. Todo dia na hora do almoço Adalberto levava junto com um prato de sopa uma bolacha para o gringo, trancado num quarto improvisado nos fundos de sua casa. Uma semana se passara e a família amedrontada mandara avisar que ele estava em viagem de negócios.

Adalberto sentado na cozinha esperava Tomás voltar com a resposta do resgate. Parecia que tudo daria certo. Dali a uns dois dias resolveriam tudo, Tomás só não precisava demorar tanto num telefonema. Começou a tocar uma música do Lulu Santos no radinho. Ariane tinha todos os discos do Lulu, imaginava a ruiva saindo do mar como uma onda com seus seios oprimidos no biquíni. Ela deitaria na toalha estendida a seus pés e pediria que ele espalhasse o bronzeador. Adalberto aumentou o som e sorriu. Bastava acertar seis números para aquilo tudo acabar bem, e ele já havia faturado quatro. O dia continuava nublado lá fora.