Jorge observava a fumaça do cigarro esvair-se de sua boca e adentrar na atmosfera. Era relaxante e tão bom quanto o próprio ato de fumar observar as transfigurações da fumaça que lhe saía dos pulmões após um dia inteiro de trabalho. Nas primeiras vezes que se dera ao raro prazer sentiu sua pressão sangüínea baixar e um torpor parecido com um choque elétrico, ficava meio grogue e aceso. Agora imaginava no ar a fumaça entorpecendo seus alvéolos e penetrando em suas artérias. Aproveitava que Mariana ainda levaria mais uma hora para chegar do escritório e ficava anoitecendo na janela junto com a rua e aproveitando a cor do baseado, com Mariana não haveria muitos silêncios, ela gostava de ver televisão e de conversar bastante.
Gostaria de ter alma de escritor, Jorge pensava junto com seus alvéolos. Transformaria essa fumaça em letras e emocionaria algumas das pessoas que andavam na rua abaixo, quem sabe até a Mariana veria menos televisão e leria suas coisas em silêncio. Certamente seria menos idiota e teria mais trocados na carteira para melhores baseados. A idéia de escrever o enchia de vida naquela janela, havia mesmo deixado para a camada de Ozônio o balé que a fumaça deslizava à sua frente, tragava o cigarrilho e sentia vontade de escrever.
Não havia de ser complicado por demais contar histórias, todo mundo as têm aos montes prontinhas para ganharem vida, narração e personagens. Com as palavras corretas e bem grafadas, suas histórias poderiam ganhar o mundo e de certa forma, ele ganharia o mundo. O mundo, ele pensava em voz baixa, posso ganhar o mundo apenas escrevendo. Tragou e fechou os olhos, precisava de palavras naquele instante, das palavras poderia construir as imagens e mesmo a onda que o cigarro lhe marejava. Poderia começar por aquela cena mesmo, um homem aguardando a sua mulher retornar a seus braços para o amor e suas pequenas misérias, beijos e confissões e silêncios que se morfariam em metáforas e verbos e aliterações. Mariana seria Margarida pois era assim que a amava, como um homem poderia amar uma flor que brilhava solene em meio à lama do cotidiano.
O trinco da porta anunciou Mariana e a música televisiva que preencheu a sala a confirmou. Jogou fora o baseado, já o havia terminado de qualquer modo. Beijou sua pequena margarida na nuca e começou a escrever seu primeiro capítulo. Um homem cuidando para que o mundo não esmagasse aquele ser que o enchia de vida.