Ele não poderia dizer que seus pés flutuavam entre os reles mortais por quem gingava por conta da bebida, da luz ambiente ou se teria sido aquele beijo. Um beijo, duas línguas, quatro lábios, mais de cinqüenta dentes e quase trezentos batimentos cardíacos por minuto; um beijo é capaz de nos tirar do chão, que queime minha língua a ferro em brasa aquele que discordar.
Um beijo anônomo e sem rosto, como se o beijo fosse alguém que estivesse ali presente, deixando o tempo passar para abduzí-lo outra vez quando ele já estivesse com os pés mais firmes no chão. Em seus ouvidos a música eletrônica soava como a melhor traviata de Beethoven, mesmo que nem ele e nem eu jamais pudéssemos lhe explicar o que seria uma traviata e muito menos se o pobre Beethoven chegou a compor alguma em vida. Ele só sabia que o compositor havia ficado surdo perto de sua morte e compunha de ouvido, o que não deixa de ser uma ironia.
Tropeçava seus passos em direção a outro beijo com os olhos enxergando o caminho quando a luz e a fumaça e o som deixavam, sua cara sonsa e meio bovina não prestava atenção em nada, ele ainda estava dentro da boca que o roubara do chão. Nessa toada, pisava em ovos, amassava cometas e chutava estrelas no caminho. Um homem perdido, ele havia se tornado e não procurava uma saída de volta ao seu caminho de bem.
Com aquele beijo em si, foi capaz de conquistar o mundo e pagar todas as suas dívidas. Escreveu sonetos e catalogou orquídeas pelo cheiro. Foi embora para a Passárgada jogar xadrez com o rei, muito amigo seu e mesmo chegou a confessar que não precisava de mais nada, pois era um homem que podia contar com um beijo em cada esquina.
Quando o beijo virou névoa, foi difícil explicar a ele que havia mais coisas na vida do que duas línguas, quatro lábios, mais de cinqüenta dentes e quase trezentos batimentos cardíacos por minuto. Ele secou, e secou, e secou, como a audição de Beethoven num fim de festa. E longe da Passárgada.