segunda-feira, novembro 24, 2003

A mulher de branco pedia silêncio. E talvez fosse por aquilo que minha boca havia se calado diante da brancura do corredor, onde, atrás da parede que emoldurava a mulher com o dedo em riste sobre dois lábios silenciosos que dissimulavam um riso sádico meu avô morria. Eu não poderia saber então como sei agora que meu avô estaria morto e há poucos dias sonhei que ele estava vivo e só fui me dar conta do silêncio em que ele havia mergulhado atrás daquela parede minutos após despertar, e então gritei, atrasado, mas gritei.

Quem não estava em silêncio era minha mãe, mas não posso culpá-la, pois decerto nunca perdi um pai. Ela perdia o dela, o meu avô, sufocado numa parede de silêncio. Minha mãe gritava, minha mãe derramava lágrimas pelo branco chão, engolia calmantes que nunca iriam saber o que é ter um pai para perdê-lo logo após, o que dirá ver um avô silenciado. Meu pai tentava tranqüilizá-la, minha avó estava ainda a caminho.

Como deveria ser o dia da morte ante os olhos de alguém que sabe que irá morrer (todos nós nascemos sob essa condição, a de morrer mais cedo ou mais tarde) mas não desconfia que dali a algumas horas ou minutos? Meu avô, me disseram, havia sofrido um ataque cardíaco ou infarto agudo ou parada cardíaca, algo relacionado ao músculo cardíaco. Ele estava sozinho em casa quando aconteceu, os vizinhos ouviram um barulho no apartamento dele e foram ver o que havia ocorrido. Foi a vizinha do apartamento de baixo, Dona Lucíola, que sempre me dava doces no dia de São Cosme e Damião, quem chamou a ambulância pois bem lembrava que o coração de meu avô já estava cansado e havia parado outra vez, anos passados.

Ele devia ter acordado cedo como sempre fazia. Minha vó saía cedo de casa, duas vezes por semana passava o dia na casa da filha e outras duas vezes na casa do primogênito. Naquele dia, ela estava na casa de meu tio. Enquanto fazia a barba, talvez se recordasse de seus tempo de ponta de lança do Campo Grande Atlético Clube ou da cerimônia num hotel cinco estrelas de São Paulo onde ganhou um relógio de ouro como reconhecimento após décadas de competência a serviço do CEASA, na ocasião de sua aposentadoria. Ou, mais provavelmente, estaria relembrando de dias ou horas ou segundos que havia compartilhado com minha avó, a mulher que ele amava havia meia década. Besuntava o rosto de creme de barbear e deslizava a lâmina.

Algo dentro dele rebentou e doeu. Eu, na minha ingenuidade de quem desconhece o rosto da própria fatalidade, apenas posso imaginar que tenha doído por uma ligeira impressão comparativa. O coração, apesar de músculo como o bíceps, é irônico tal qual o encéfalo - pelo menos é o que nós, ocidentais, gostamos de acreditar. Quem não gosta de sentir o coração pulsar valente diante do ser amado, seja ele uma menina bonita, o rapaz prometido, um cachorro sardento ou uma réptil tartaruga? E eu lembro bem de sentir meu coração gelar quando, muito mais novo, fui abordado no meio da rua por um par de simpáticos assaltantes e dele silenciar junto com o restante do corpo naquela curva impossível que Petkovic desenhou com a bola no Maraca e deu o tri pro Mengão aos quarenta e cinco do segundo tempo. Meu avô, alvinegro como minha mãe, deve ter sentido algo doer, porque alguém vivo não se apaga como uma calculadora.

Não sou um daqueles que se entusiasma com a idéia de um filme em preto e branco em câmera lenta ao som de sua canção favorita passando ante suas vistas enquanto seu coração pára de bombear sangue oxigenado em direção a seus órgãos vitais, ainda que faça sentido o torpor provocar delírios e afins. Meu avô era alguém prático, foi um trabalhador durante toda a vida e gostava do Frank Sinatra. Ele deve ter pensado que não poderia entregar algo importante para um de seus filhos ou netos dali a algumas horas, ou talvez que minha vó estivesse longe demais para socorrê-lo. E acho muito difícil que o refrão de "New York, New York" tenha começado a ressonar das trombetas do Paraíso naquele momento de tensão e desespero e falta de ar. Foi então que seu corpo tombou, fez barulho e assustou os vizinhos.

Era um dia de semana, uma terça ou uma quarta, meu irmão caçula me tirou da cama com o telefone na mão e a notícia nos olhos. Meu pai havia ligado, estava a família se dirigindo ao hospital, algo de errado acontecera no peito de meu avô. Fui tomado por algo que eu não compreendia, e não compreendo bem até hoje. A certeza de que meu avô havia sido feliz, que encontrara uma mulher que o amava e tivera filhos que lhe deram netos e outras alegrias me dizia que a morte era apenas a parte final da vida, muito mais dolorosa para quem a vê do quem a vive. Então veio aquele branco e aquele silêncio e meu avô morreu.