A última vez eu havia acordado e fui escovar os dentes. Ela dormia, devia ser sábado ou domingo, daqueles bem clichês com o sol azul e a tevê ligada na sala passando futebol. Ela dormia, eu brincava com a escova fazendo espuma na minha boca enquanto o Ronaldinho se livrava de dois zagueiros mas perdia a bola para o goleiro. A torcida suspirava coletivamente.
De volta à pia, cuspindo a espuma e fazendo um bochecho, pensava em duas coisas básicas: se deixava a barba continuar crescendo e o que aquela mulher ainda fazia dormindo na minha cama? Dez da manhã, eu de dentes limpos, o Ronaldinho já havia feito dois gols e ela dormindo. Na minha cama. A minha barba eu resolveria sem maiores problemas, afinal, ela era bem crescidinha mesmo e já havia se decidido na vida. Mas aquela mulher, ela precisava acordar pelo menos.
Espiei pela porta do quarto, ela ainda parecia bonita, na verdade, ela era ainda mais bonita enquanto dormia, mas eu nunca confessava esse pecado capital porque a gente se divertia bem mais quando acordados. Quando uma mulher ainda é bonita após passar dois anos dormindo na sua cama, dá o que pensar. Você se torna cúmplice de si mesmo, cúmplice do corpo dela, cúmplice. Quando ela acordasse, eu teria inventado tramóias que o sono dela não poderia perceber. E Deus sabia que eu até havia infringido dogmas de Sua santa madre igreja por culpa do sono dela.
A questão é que ela era bonita, por isso eu não me permitia despejá-la de minha cama. Pouco me importava a opinião dela sobre os filófosos realistas franceses, sobre Bob Dylan ou sobre a conclusão de Matrix, quando ela estava em minha cama ela era apenas bonita. Nem uma mulher bonita, mas apenas bonita, intransitiva e bonita. Mas aquela beleza toda estava me deixando inquieto aquela manhã. E eu não sabia onde havia deixado o vinil do Hendrix que servia para amenizar meus desassossegos matinais.
Comecei a tentar ver o que sustentava aquela beleza ninando na minha cama pela manhã. Raramente tínhamos assuntos para conversar que não fossem frivolidades diárias, descarregos de trabalho ou rinhas de relacionamento. Ela detestava minha gravata azul marinho, eu sempre sabia quando ela precisava convencer o chefe a partir do decote da blusa. O sexo era sexo, como o sexo de qualquer casal, cada um sabe trepar à sua maneira. De vez em quando, um de nós surpreendia o outro com novos truques, palmadas, beliscões, xingos, rosas e trufas. Sabia que ela usava um colarzinho com um crucifixo, mas nunca a vira rezando ou usando o santo nome em vão.
Que diabos eu havia visto naquele corpo bonito que jazia em minha cama havia já um par de anos para me meter nele? Será que ela já havia me dito algo interessante a ponto de me fazer pensar que outra mulher, por mais bonita que fosse e melhor trepasse, seria menos que ela? Provavelmente sim, mas começava a duvidar de mim, pois nada que ela tivesse me dito de interessante me vinha à tona. Ela iria acordar, e não seria tão bonita sem ter nada o que me dizer de interessante. Então jurei a mim mesmo que aquela seria a derradeira manhã: ou aquele diabo de mulher me explicava porque era tão bonita, ou ela teria que procurar outra cama para amanhecer sua beleza definitiva. Fui tomado por um alívio publicitário após proclamar meu ultimato. O sono dela jamais poderia desconfiar que era cúmplice de minha conspiração. Ronaldinho, limpou um, trombou com outro, tirou o goleiro da jogada com o olhar e gol, mais um gol brasileiro, meu povo.
Senti a cama se remexendo com ela. Estava acordada, já não era sem tempo. Escutei a porta do banheiro se mexendo e alguns ruídos primeiros do corpo dela. Passos caramelizados. Descarga. Torneira. Gargarejo. Passos de creme de leite. Ela surge na sala com o meu vinil do Hendrix numa das mãos. Pior, ela surge muito mais bonita do que eu havia julgado. Pede para eu colocar o disco na vitrola, tem uma música no lado B que eu gosto de te ver escutando com os olhos fechados. Então, senta-se ao meu lado e pergunta quanto estava o jogo.
Pus o disco na vitrola e desliguei o jogo na tevê. Cúmplice do corpo que ela recostava em mim, resolvi dar a ela mais uma semana de prazo. Não havia de ser tão complicado assim. Era uma sensação estranhamente boa vê-la de olhos fechados, quase dormindo, impossivelmente bonita enquanto a velha Stratocaster de Jimi extirpava de mim quaisquer desassossegos matinais. Fechei os olhos e sorri, eventualmente castelos feitos de areia escorriam para o mar.