quinta-feira, outubro 02, 2003

O amor de cada um (IX)

Todos os sábados, César Toledo deixa seu prédio na Rua Joana Angélica, em Ipanema, às 15h e caminha até a Praça Nossa Senhora da Paz. César conta para sua esposa, Lúcia, que quer aproveitar a tranquilidade da praça para ler. Lúcia nunca questionou as intenções de seu marido e também nunca quis acompanhá-lo. César tem 54 anos e está casado há 25. Lúcia é uma boa esposa, atenciosa e compreensiva, mas nunca teve muita paciência para os delírios solitários de César. Ao menos, ela também não se importa.

No último sábado, véspera da comemoração da independência do Brasil, ele seguiu sua rotina. Sentou, o César, num banco próximo ao parquinho das crianças e abriu A Peste, do Camus. Na verdade, ele pouco lia livros naquele banco. César ficava ali, sentado, atento, agoniado, observando as crianças que brincavam na praça. Ele não entendia exatamente seus sentimentos, mas gostava de observá-las, meninas e meninos brincando inocentemente ao ar livre. Não entendia, ou não queria entender.

Ele até tentou disfarçar naquele dia, mas Castel, Tarrou, Rambert e Rieux não conseguiram prender mais sua atenção do que Aninha, Marcinha, Pedrinho e Carlinho. Foi a sapeca Márcia Francisca de Oliveira, de 8 anos, filha de uma editora de livros infantis e de um tenente da aeronáutica, que pediu para César ajudar seu grupo de amigos. Ele apenas teria que dizer um número, de 1 a 4, para designar aquele que começaria contando até 30 em voz alta com os olhos cerrados em frente à lateral do escorrega, para depois sair à procura dos outros que iriam se esconder.

Mas César não esperava que logo ela, uma criança que viera ver, fosse falar com ele. Gaguejou a princípio, mas logo aceitou a tarefa, como não poderia deixar de ser. A mais, propôs às crianças ser ele, também, um fiscal da brincadeira, garantindo justiça ao resultado de cada rodada. Elas, as crianças, concordaram.

Enquanto isso, quatro babás, cada uma responsável por cada uma das quatro crianças, conversavam alegremente sobre os namorados, existentes ou não, e também sobre samba. Jussara, mulata, moradora de São João de Meriti e babá de Pedrinho, defendia o grupo Os Travessos como o mais representante símbolo da musicalidade brasileira. Já Juliana, também mulata, moradora de Ramos e babá de Aninha, dizia com propriedade que o Fundo de Quintal nunca seria igualado. As duas eram boas babás, apesar de seus patrões, Suzana, José, Maria e André, não parecessem se importar tanto assim. Eles, os patrões, nem tinham idéia de seu gosto apurado por samba. Provavelmente nem lembravam os locais onde elas moravam.

As babás viram César dialogar com as crianças. Ali, na Praça Nossa Senhora da Paz, é bastante comum que pessoas mais velhas brinquem um pouco com os filhos dos outros. Elas eram boas babás e ficaram atentas ao objetivo de seu trabalho, mas continuaram sentadas à distância, conversando sobre assuntos diversos.

Ele, César, passou pelo menos 10 minutos mais próximo do que o habitual àquelas quatro crianças. Reparava em seus gestos, cabelos, olhos, narizes, mãos, braços e pernas. Algumas vezes abraçava uma ou outra para comemorar uma boa performance na brincadeira. Seu preferido para os abraços era Carlos Aguiar Alves, de 10 anos, filho de dois médicos - ele, pediatra, e ela, oftalmologista - e bom aluno no colégio. O garoto fazia natação e tinha os ombros largos, ideais para um abraço mais gostoso. César também dava carinhosos tapinhas nas bundas das crianças, como incentivo à brincadeira. Se alguma delas se importou, pelo menos não demostrou.

Pouco tempo depois, sem se despedir, César saiu de perto das crianças e caminhou para fora da pracinha. Ele não reparou, mas um senhor, Josias, pai do menino Fernando Rodrigo Albuquerque, que estava sentado num banco da praça enquanto seu filho brincava no balanço, ficou observando seus passos por todo o tempo. Todo sábado, Josias via César ali na Nossa Senhora da Paz e alguma coisa nele o chamava a atenção. Só que ele não sabia exatamente o que era. Ou não queria acreditar.

César partiu dali direto para a igreja próxima ao parquinho. Ajoelhou-se por trás do banco mais afastado do altar e passou meia-hora rezando. Todos os sábados, César, depois de sair da praça, passava um tempo rezando naquela igreja.