Culpabilidade e cumplicidade
Existe punição possível para um assassinato? Como chegar para a família do brasileiro Galdino e dizer que ele estava sem dinheiro para pagar um hotel, resolveu dormir num banco de praça e uns moleques que tinham dinheiro de sobra brincaram de ATEAR FOGO EM ÍNDIO com o pobre coitado? E isso é pior do que as guerras ditas santas (aliás, uma associação de palavras espetacular, guerra e santa), que pelo menos são declaradas e tem uma explicação, mesmo que ignóbil. Já os quatro marginais que colocaram fogo no índio tinham o único propósito de se divertir, nada a mais, apenas preferiram matar um sujeito qualquer a pagar uns R$ 20,00 para comer uma puta.
Tudo isso aconteceu em 1997, lá em Brasília, capital do Brasil, cidade que todos enchem a boca para dizer que foi planejada. Os bandidos são filhos de funcionários públicos, de um juiz federal e de um ex-ministro do TSE. Nós, zé-povinho em dia com nossos impostos, pagamos a educação dessa garotada. E com certeza pagamos também a mesada usada para comprar os fósforos.
Acho importante repetir porque talvez não tenha ficado claro, talvez já tenhamos esquecido: eles atearam fogo num ser-humano. E, mesmo assim, têm o direito a prisão semi-aberta. Podem até trabalhar, enquanto o IBGE apontou um índice de 13% de desempregados no país em agosto de 2003. Continuam estudando, mesmo com os níveis alarmantes de analfabetismo no Brasil.
Eles, os assassinos, arranjaram até namoradas, como informou uma matéria do Correio Braziliense desta terça-feira. Que mulher é essa que namora um sujeito que colocou fogo num índio? Eles não são nem aqueles bandidos charmosos, que escapavam da polícia, recitavam literatura e ajudavam os pobres. Nenhum Lucio Flávio, Hosmany Ramos, Robin Hood ou Leonardo Pareja. São apenas playboys que choraram e se esconderam debaixo das togas dos pais quando presos. Desculpem-me as mães destas namoradas, mas ou elas estavam sendo enganadas ou elas são putas. Se fosse minha filha, eu dava uma boa coça: ou para parar de ser otária, ou para parar de se prostituir.
A mesma matéria também informou que os marginais dirigiam, bebiam e iam a festas. Enfim, divertiam-se à vontade por aí. Eles foram agraciados com o regime de prisão semi-aberta no ano passado. Desde quando eles se divertiam como pessoas normais? Um, dois, seis, doze meses? Será que as fotos dessas pessoas não foram amplamente divulgadas? Será que seus rostos macabros não são bem conhecidos na cidade?
Vendo um desses bandidos na rua, há outra atitude possível que não chamar imediatamente a polícia? O que explicaria a permanência desses assassinos por tanto tempo num meio social e pretensamente sociável?
Seus compatriotas, nós, brasileiros, parecemos ter vergonha de admitir que alimentamos este tipo de marginal. Às vezes alguém lembra que os bandidos de favela, os traficantes pé-de-chinelo, estes são vítimas da exclusão social num país que, há muito tempo, vai dar certo apenas no ano seguinte. Alguns aceitam esta explicação, lamentam, e dão uns trocados para os jovens clowns em sinas de trânsito, com a tola certeza de que estão salvando mais uma alma do caminho do mal. Alguns até montam ONGs, a nova mania das dondocas sem nada para fazer depois do chá das três e antes do grupo de estudo de arte contemporânea.
Mas alguém precisa lembrar essa gente, nos lembrar, que o assassinato do brasileiro Galdino também é nossa culpa, máxima culpa. Nós pagamos os salários de seus pais, que não foram responsabilizados pela educação desastrosa. Existem pais ruins, mas estes nem a importância da vida ensinaram - o valor mais primário. Sim, nós compramos seus livros e pagamos as escolas caras, com a disciplina Moral e Cívica na grade de horário. E não as responsabilizamos. Compramos também os fósforos. São baratos, quase uma pechincha perto das excursões para a Disney que devemos ter pago.
Só que agora nós temos vergonha e não encaramos os assassinos de frente. Eles ficavam andando livremente por aí na rua sem que pessoa alguma olhasse fundo nos seus olhos. E é óbvio que todos sabem quem eles são, Mas nós temos vergonha do que fizemos, do que os tornamos. Em muitos casos, temos até vergonha por sermos iguais a eles, com vontades doentia, prontos para cometer um crime hediondo com a cumplicidade de toda sociedade. Esses assassinos de Brasília, que voltaram aos jornais agora, são os únicos capazes de nos lembrar de nossa culpa em sua formação. E que punição devemos dar para cúmplices de um assassinato?