sábado, outubro 11, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 07)

(continuação do dia 27 de setembro de 2003)

- Não, Bia, eu não quero e acho que você também não deveria usar este tipo de coisa.

Ela riu, gargalhou. Não disse nada e continuou aspirando com prazer. Eu não tinha muito o que fazer ali, seria um chato se arriscasse algum discurso moralista e poderia afastá-la, minha Bia. Em relação a ela, talvez este tenha sido o único porém daquele nosso primeiro encontro. Ah, e como eu tentei apagar de minha memória, deixar apenas as lembranças agradáveis e nem ao menos dar espaço em meu relato à maconha! Mas seria impossível contar todo meu infortuno que se sucederia àquela noite chuvosa sem dizer que Beatriz Carvalho foi honesta comigo e confessou logo de cara um de seus maiores pecados. E eu a perdoei.

- Eu jurava que você fumava, você parecia estar chapado lá embaixo, falando aquelas coisas na chuva...

Eu já sabia que minha declaração de amor viraria chacota em algum momento da relação que eu aspirava ter com Bia, mas não imaginava que isso poderia acontecer tão cedo. Ela me provocava, sim, mostrava-se uma fanfarrona aquela Beatriz Carvalho, com o pouco respeito por coisas importantes para outrem, característica de sua idade e personalidade. Envergonhei-me com a situação, mas não tive muita alternativa a não ser confirmar minhas primeiras palavras. Fui sincero, Bia, estou realmente apaixonado, tenho certeza que você é a mulher da minha vida. Eu não tinha para onde fugir mesmo, estava num quarto fedorento com aquela maldita fumaça pecaminosa, com a porta fechada atrás de mim, com a janela fechada atrás dela e aqueles olhos me encarando e aguardando uma resposta.

- Eu só havia bebido um pouco, mas o que falei foi verdade. É que você é encantadora.

Finalmente retomei o juízo de minhas palavras e acreditei que a partir daquele momento eu conseguiria controlar a situação. Ela pareceu gostar do encantadora, deixou a maconha de lado, com a ponta acesa apoiada na tampa da lata em cima da cama, e sorriu. Abriu o armário, pegou uma toalha verde e me deu. Eu sequei meus braços e, enquanto encoberto pela toalha que secava meus cabelos, ela me puxou para sentar na cama. Já havia transferido todos os objetos dali para a o criado-mudo.

Sentou-se ao meu lado na cama, a Bia, e deitou sua cabeça no meu peito, apertando sua bochecha contra minha blusa molhada. Eu estava com as costas tortas, encostado na parede, apoiado pelos antebraços na cama, numa daquelas posições que um médico não aprovaria. Passei meu braço em volta de seu ombro esquerdo e a abracei com intensidade, porém suavemente. Meus dedos alisavam seu cabelo e eu até ousei alguns carinhosos arranhões. Meu coração acelerou e acredito que ela tenha reparado porque afundou com ainda mais força sua cabeça em mim. Beatriz Carvalho, você é minha, sou seu suporte, você está aqui, parte deitada sobre meu corpo. Não senti desejo, mas regozijei com a doçura daquela cena. Era como se nos conhecêssemos há muito tempo, como se ela fosse uma irmãzinha mais nova que pedia algum carinho ao irmão protetor.

Ficamos pouco tempo assim, porque num mundo machista onde eu deveria tomar alguma iniciativa, Bia não perdia tempo. Levantou-se e eu sofri momentaneamente pela perda daquele agradável encosto.

- Até que você me faz sentir bem à vontade, Sr. Júlio Sarnento.

E lá vinha ela novamente me provocando, adicionando tratamentos desnecessários a meu nome e ainda trocando meu sobrenome. Ah, Bia, sua sacana, você parece se aproveitar de um coração bêbado e apaixonado. Mas até que o que você disse dessa vez me agradou, apesar da escolha jocosa de palavras. Vou mais além e digo com certeza que esta frase, esta declaração de sentimento, este "à vontade" foi a melhor coisa dita por você a mim naquele dia. Voltando para casa um pouco depois, num ônibus qualquer que passava por Copacabana, lembrei desta frase acima de tudo. Mais até do que seus fascinantes olhos, mais até do que seus seios que você viria a me mostrar logo em seguida. Eu a fazia, minha Bia, se sentir à vontade. E que fosse num quarto, num cortiço ou pegando chuva na Joaquim Silva: eu, Júlio Sarmento, a fazia se sentir à vontade. Esta sensação foi suficiente para fazer aquela noite ter valido a pena.

(continua em breve)