quinta-feira, agosto 21, 2003

O amor de cada um (VII)

Eu só tinha dezoito anos, merda, eram só dezoito anos. E já queriam me cobrar decisões para toda a vida, coisas de adulto. Eu não tinha maturidade, sabe? Eram dezoito anos recém adquiridos, menos de um mês passara da data de meu aniversário. Só podia dar errado, tinha tudo para dar errado.

Até hoje não sei o dia exato que a Ana engravidou. Naquela época eu ainda a chamava de Aninha e nosso mundo era colorido de vermelho pelos corações juvenis. Quando se tem dezoito anos, ainda se acredita em corações perfeitos, formados pelo encontro de dois arcos com uma das pontas mais esticada e a outra mais torta. Eu era o arco esquerdo e ela o direito, até compramos um pingente para representar nosso amor.

O amor, ah, o amor era tudo para nós. Foi aquele amor que não permitiu que nós abortássemos o fracasso que seria nosso futuro. Não lamento nosso filho, mas lamento todas as coisas que naquela época entendemos fazer parte do pacote "papai e mamãe". Que bastasse o amor.

As dimensões do quarto de Ana eram exageradas para uma só pessoa, talvez ideais para dois irmãos, mas se mostraram péssimas para um casal e seu filho. Foi lá que fomos morar, com meus sogros dormindo no quarto ao lado e meu cunhado no da frente. A cama de casal ficava no centro, atravessando nosso pequeno espaço da parede com armários embutidos à outra completamente branca. A televisão ficava pendurada na parede à direita da cama, bem ao lado da porta. Do outro lado, havia uma janela, sempre fechada para não bater vento no berço que ficava bem abaixo, no lado esquerdo da cama.

Ana morreu em nosso quarto, bem do lado direito da cama, perto da porta e abaixo da tv. Era o único espaço no chão onde uma pessoa adulta conseguia deitar sem dobrar as pernas e foi ali que eu a matei. E não, não detalharei os últimos instantes de minha falecida esposa porque me trará dor. Nem falarei sobre o destino de nosso filho e os acontecimentos que se sucederam.

O amor, ah, o amor motiva minhas lembranças e guia meu relato. Quero falar do amor, nada mais. Porque um dia eu a amei com intensidade, como se estivéssemos perdidos nos labirintos de Veneza até aquele 10 de maio de 1996 e nos encontrássemos na Praça São Marco, bem no centro da cidade. O amor, ah, o amor nos fazia sonhar com esse tipo de coisa.

Eu dizia eu te amo e não era vazio, entende? Sentíamos o amor, aquilo percorria realmente meu peito. Eu não me cansava em lembrar. Eu te amo, Aninha. O amor, ah, o amor que sentíamos naquela época nunca entenderia o futuro que nos aguardava. Talvez ele se arrependesse, o amor, de ter nos fisgado tão forte e ter nos levado a tão trágico fim, mas o amor não pode trazer arrependimentos. Eu não posso culpar o amor pelo que aconteceu.

Nosso casamento foi fantástico, a Ana usou um vestido longo, todo branco. Juntou um monte de gente para invejar nosso amor. Na saúde e na doença, até que a morte nos separasse. Os convidados nos olhavam com admiração, querendo entender como poderia existir tanto amor. Lembro bem das palavras finais do padre. "O amor, meus filhos, é de cada um. Não se entristeçam por achar que um ama mais que o outro. Simplesmente amem".

Cinco anos depois Ana estava morta. O amor, ah, o amor nos fazia discutir qual de nós dois seria privado primeiro da presença do outro pela morte. Giulietta Masina amava Federico Fellini e morreu poucos meses depois do marido. Morreu porque a saudade provocada pelo amor era intolerável. O amor, ah, o amor matou Giulietta, mas não foi o amor que matou Ana.

Eu aprendi que o amor seca. Ele não acaba, porque novamente pode crescer de onde não aparenta haver mais nada. Mas ele sabe se esconder muito bem dos corações, que então deixam de ser formados por aqueles arcos perfeitos. Eu aprendi isso. Meu amor por Ana sempre existiu, mas eu permiti que ele se escondesse tanto, que meu desespero a matou. Nosso erro foi ter esquecido do amor.

Eu te amo, Aninha, foram as quatro últimas palavras que ela ouviu. O amor, ah, o amor pode ser condenado apenas por ter demorado um instante a mais para reaparecer. Não precisava reviver nosso passado, mas o amor poderia ter nos garantido um futuro.