segunda-feira, agosto 18, 2003

O amor de cada um (IV - b)

(para os que quiserem ler o início da história, desçam até o dia 28 de abril de 2003)

À noite, logo depois da novela, saí de casa para buscar Adriana em seu apartamento. Eu estava meio nervoso com aquela situação e liguei para minha recém contratada assim que saí da Êxtase Total, a agência. Eu não conseguia me acostumar com essa coisa de pagar por uma mulher, mas não tive outra opção. Queria fazer amor afinal, mesmo que o ato estivesse em desuso já há algum tempo.

Liguei logo porque logo seria melhor resolvido. Ao telefone ela tinha um timbre de voz nasal, igual a da minha primeira esposa, um erro em minha vida. Eu iria acabar lembrando da maldita Bárbara com aquela voz da prostituta Adriana. Fiquei mais nervoso ainda. Sem prolongar a prosa marquei local e horário para pegar Adriana e desliguei.

Não me importo que você fique com a reprodução do Botero, mas o gato vai ficar comigo, disse Bárbara há muito tempo, em nossa partilha de poucos bens. E para que diabos eu iria querer um quadro com uma família de gordos? A mãe gorda estava de costas e eu tinha que ficar olhando para sua bunda. Gorda, a bunda, óbvio. Mas o gato era diferente. Era divertido ficar jogando o gato de um sofá para outro.

Acabou casando com um professor de história, a Bárbara, e nunca mais nos vimos, graças a Deus. Só que o olhar de temor do gato voando aparecia todas as noites em meus sonhos. Que saudade daquele gato! Incomodou a lembrança de Bárbara que a voz de Adriana me trouxe. Fiquei mal humorado mesmo.

Como combinado, peguei Adriana na porta de seu prédio em Copacabana. Era um daqueles prédios tradicionais de Copacabana, com garagem minúscula e muitas pessoas de idade. Ela era linda, a Adriana. Usava um vestido preto até a altura do joelho e salto alto também preto. Na aparência seguia realmente meu desejo, não tinha comprado gato por lebre. Pele bem branca, cabelos curtos e escuros, simpática. Definitivamente eu nunca teria uma mulher daquelas sem pagar 400 reais. Pelo menos não com 56 anos.

Ela entrou no carro cheia de sorrisos e, mal sabia, só estava alimentando meu mau humor. Meu velho pai, já há muito falecido, dizia que só as mulheres de vida fácil sorriem muito. Raparigas que mostram os dentes são rameiras, meu filho. Ele não tinha exatamente muita elegância, o velho, mas sempre teve sabedoria. Outra coisa que me incomodou foi sua boca pintada com um vermelho horrendo. Raparigas que pintam muito a boca são rameiras, meu filho. Ah, os ensinamentos de meu velho surgiam com muita facilidade para meu temperamento ficar incólume.

Eu já tinha 56 anos, ora bolas, tinha o direito de ter manias. Definitivamente muito sorriso e boca pintada não me agradavam. Falei para ela. Disse mesmo. Não gosto dessa cor na sua boca. Preferiria você mais séria. Eu tinha que dizer, eram 400 reais e ela não era exatamente uma dama.

A moça se ofendeu. Ficou um tanto triste - era sensível, pobrezinha. Era sensível e saía com um velho azedo de 56 anos. Tentei descontrair e coloquei uma música do Chico no moderno cd player de meu Dodge Magnum 79. Era espetacular meu carro: comprido, estofado de couro creme e um cd player da Sony. Cantarolei, pedi desculpas, disse que ela era linda e a fingida se desofendeu.

- Você gosta de Garcia Márquez, né? - perguntei para aliviar o clima.
- Adoro o Gabo.

Gabo? Mas você tem intimidade com ele, cara Adriana, para chamá-lo de Gabo? Raparigas que dão muita intimidades aos homens são rameiras, meu filho. Ah, velho pai, como o senhor era sábio!

- E quais livros você leu dele?
- Ah, por enquanto eu só li o Cem Anos de Solidão.

Como assim? Na agência estava escrito em seu perfil que Adriana era fã do "Gabo" e, na verdade, ela só tinha lido um livro dele. Mas não era possível. Com 400 reais eu teria comprado todos os livros do Garcia Márquez e ainda tomava um café na Argumento. Lembrei de um amigo de adolescência que dizia que adorava Nabokov, mas só tinha lido Lolita. Era o André Miranda. Ele gostava da obra, não do autor, caramba, só que dizia que gostava do Nabokov para impressionar. Era um bom amigo, o André, mas falava algumas besteiras. Morreu jovem, coitado.

- Fora o trabalho junto à agência, você faz outras coisas? - perguntei, querendo mudar de assunto.
- Sou estudante de jornalismo.

Aí foi demais para mim. Eu nunca paguei por uma prostituta, mas sabia que sua outra ocupação sempre fora modelo-manequim. E as profissões não viam desassociadas. O que você faz, prostituta? Sou modelo-manequim, diziam exatamente nessa ordem e esbanjando um sorriso que meu velho pai odiava. São rameiras, meu filho.

Mas eu descobri que a ocupação das prostitutas havia mudado. O que você faz, prostituta? Sou estudante de jornalismo. Não era mais uma simples modelo-manequim, era uma estudante. E estudante de jornalismo. Quando eu comecei no jornalismo, havia poucas mulheres e todas eram cultas e liam Simone de Beauvoir. Era por isso que agora cobravam 400 reais pelo serviço. A Adriana não era uma simples prostituta tipo modelo-manequim, afinal. Era uma prostituta tipo estudante de jornalismo. Lia Simone de Beauvoir, a rameira. Jornalismo não é uma profissão de gente de bem, meu filho. Ah, meu pai, o senhor estava realmente certo.

(continua em breve)