Novas amizades
Chegando ao trabalho, eu sempre paro meu carro no mesmo lugar. E sempre são dois jovens, negros, que me ajudam a achar uma vaga. Eles estão sempre naquela mesma rua e acenam com uma flanela velha e suja quando meu carro aparece em seu campo de visão. Na verdade eles não são tão jovens assim, devem ter minha idade ou até mais.
Eu e aqueles dois jovens nunca havíamos trocado uma palavra. A rotina sempre foi clara. Eu chego de carro, eles acenam, eu paro o carro e pago dois reais adiantados - não por eles pedirem, porque nunca nos falamos, mas porque eu gosto de pagar os dois reais para os flanelinhas que se esforçam em me ajudar. Às vezes, não há vagas e um dos jovens tira um molho de chaves do bolso, seleciona uma e libera uma vaga qualquer retirando outro carro. Eu agradeço a ajuda, mas eles nunca agradecem os dois reais. Simplesmente pegam o dinheiro, colocam no bolso e se viram em busca de outro freguês. Podem até parecer indelicados, mas eu não me importo.
Mas ontem eu, com minha mania de ficar amigo de todo mundo, fiquei amigo dos dois guardadores. Saí do trabalho tarde, meio cansado e me dirigi para o carro. Passei por eles e disse um sonoro boa noite. Devo ter dito outras besteiras também. Salve, pessoal; alô, galera; e aí, beleza; ou outras saudações estúpidas a que estou acostumado. Um deles respondeu e perguntou se eu iria para o Centro.
Nessas horas bate aquele receio que acompanha todos os cidadãos cariocas. Os burgueses, pelo menos. Será um assalto? Sequestro? Querem meu dinheiro? Eles são negros e pobres, afinal. E em nosso estereótipo, por mais que neguemos, os burgueses cariocas, todos os negros pobres são prováveis bandidos sanguinários dispostos a tudo para conseguir meia dúzia de reais.
Da mesma forma que tenho esse estereótipo, o burguês, já trabalhei em comunidades carentes e sei que não é a pobreza e muito menos a negritude que dão a luz a bandidos sanguinários. Mantenho comigo meu receio por uma precaução infelizmente necessária, mas me envergonho dele. Disfarcei e, para ganhar mais alguns instantes matutando o que fazer, perguntei para onde iriam.
Central do Brasil. Pegar algum trem ou algo parecido, imaginei. Trabalharam o dia inteiro e agora só queriam retornar ao lar. Não podia ser outra coisa.
Vamos lá, senhores, a casa é de vocês, eu os levo a seu destino. Pedi para que tivessem cuidado com meu casaco no banco de trás e o que sentou ali teve. Entraram muito cuidadosos, aliás, batendo a porta devagar e sem mexer em nada. Aí eu quis ficar amigos dos caras. Coloquei um sambinha, Cartola, Sala de Recepção, para animar o ambiente e eles se sentirem mais à vontade. Não surtiu muito efeito. Nem mesmo pareceram surpresos, devem gostar de funk, aqueles guardadores. Perguntei, então, se iriam para casa e descobri que Marechal Hermes era seu destino. Todos os dias eles saem de Marechal Hermes para a Glória a fim de ganhar uns trocados guardando carros.
O Marechal Hermes da Fonseca nasceu em 1855, em São Grabriel, Rio Grande do Sul e morreu em 1923, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Ele foi Ministro da Guerra de 1906 e 1910. Foi deste período sobre sua responsabilidade que o serviço militar obrigatório foi instituído. Em 1910, ele disputou a eleição para presidente da República com Rui Barbosa e saiu vitorioso. Os intelectuais da época, coitados, loucos por Rui Barbosa, ficaram desiludidos. Hermes governou até 1914.
Não contei a história de Hermes da Fonseca para meus novos amigos porque achei inoportuno. Podiam me achar estranho, mas na próxima carona eu vou contar. Conversamos sobre outras coisas, porém, e eles me perguntaram se eu tinha feito muitas reportagens naquele dia. Contei algumas coisas chatas e rotineiras que no meu relato devem ter parecido espetaculares. Conversamos também um pouco sobre paternidade na adolescência e eu citei um amigo que é pai e praticamente um adolescente.
Por algum motivo que não saberei explicar, não perguntei seus nomes. Simplesmente os deixei numa esquina da Presidente Vargas. Agradeceram diversas vezes e atravessaram a avenida em direção à Central.