Acontecia nas horas menos previsíveis, assim como foi o encontro de suas linhas de vida. Ele caminhava um pouco mais depressa para não perder o ônibus e o gosto dos lábios misturados com cigarro e pizza reaparecia nele após galgar o primeiro degrau do coletivo. Um passageiro menos ensimesmado com sutilezas da memória o cutucava para que ele andasse mais depressa, ou perderiam ambos o andar da carruagem.
Andava com essas distrações momentâneas desde conhecer aquela garota que caçoava de sua baixa estatura havia algumas semanas. No início, as memórias eram pequenos esporos de lembranças, mal apareciam e já haviam sido. Quando muito o faziam sorrir timidamente dentro dentro de uma fila estagnada por cerca de um quarto de hora. Mas conforme as suas linhas de vida foram se entrelaçando, algo em suas memórias sensoriais deixou de ser pessoal para se tornar cúmplice. As horas do dia e mesmo os dias da semana foram adquirindo outros sons e cheiros.
De início eram apenas imagens rápidas, mas logo apareceram também pequenos sons. Um dia ele levou quarenta minutos a mais para pregar no sono ao descobrir que seu travesseiro conservara o cheiro da cama dela, pois que ao retornar duma viagem no domingo à noite ele preferiu passar a noite na casa dela. Não tardou para que logo as imagens compusessem quadros, com trilha sonora e até sabor próprio. Músicas ganharam outras interpretações, palavras adquiriram novos sentidos.
Tudo aconteceu cotidianamente. Era normal então que agora ele estivesse gostando de música francesa e ela procurasse nas entrelinhas da vida versinhos de Manoel de Barros. A mãe dele achou estranho o rapaz bebendo café com leite ao acordar e seus amigos todos notaram que de uns dias para cá a sua barba andava aparada com alguma regularidade, mas não foram apenas os colegas de trabalho que comentaram entre si o novo humor e o novo decote que ela dera para ostentar por esses tempos.
As memórias passaram a habitá-lo com cada vez mais freqüência, em toda parte. No meio de filmes, durante um telefonema, ao pagar sua conta no bar. Um olhar, uma manhã, fios de cabelo sobrando na nuca. Então nesta manhã em que ele acelerava o passo para não perder o ônibus veio o beijo temperado de calabresa e nicotina, que o paralisou ante a porta de entrada do ônibus. O homem que vinha atrás dele tentou o apressar, mas percebeu que o motorista também estava sem muito tempo para reminiscências e logo engatou a primeira.
Enquanto seu corpo era arremessado para o asfalto, alguns menos distraídos com o correr das horas gritavam ante a proximidade das rodas do automóvel com aquele corpo rapidamente transformado em músculos fragmentados por ossos e panos. Ante a gritaria o motorista parou o carro, mas já era tarde demais. E médico nenhum subscreveria no laudo a verdadeira causa mortis: amor.