Num domingo chuvoso e depressivo, nada melhor do que passar o dia trabalhando e revirando as tralhas do escritório. E foi nesse clima de exaltação que esbarrei com minhas esquecidas anotações sobre a festa de Reveillon de 2003, comemorada na capital de meu povo adotivo, Salvador. Eu tenho essa mania de colecionar blocos de anotações que servem para diversas coisas desordenadamente. Nesse, um amarelinho de capa dura com duas crianças bem fofas fazendo as boas vindas, há roteiros de vídeos, listas de gastos de viagens, resumos de reuniões e a lembrança de alguns causos de minha road trip Rio-Salvador.
No prefácio de Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre afirma seu encantamento pela Bahia e ressalta os intelectuais e diplomatas baianos. Todo baiano, aliás, é um diplomata lato-sensu, por sua postura fina de inigualável distinção. Desta forma, passear pela Bahia e conversar com sua gente é uma delícia. Dessa premissa vieram minhas anotações.
E nelas tem o frentista que não deixou que eu passasse meu cartão de crédito com chip para pagar 80 reias de gasolina numa estrada próxima a Eunápolis. "Meu rei, na Bahia não tem esse negócio de chip, não", bateu pé o infeliz, impedindo-me de relutar. Tem também o auto-intitulado mestre Satélite. Como falamos da Bahia afinal, o tal Satélite deveria ser mestre de capoeira. Não perguntei. Minha namorada e companheira de viagem estava longe no momento em que o Satélite me viu reparando naquilo que a baiana tem. Me abordou e foi logo perguntando se yo tenía mucho gusto por una baiana. Ô, conterrâneo Satélite, não sou baiano, mas também sou brasileiro, ora! Desculpas feitas, Satélite vai direto ao que realmente interessa: "se vc quiser, eu te arrumo uma igual a essa aí que passou, preta e tudo mais". Apesar da curiosidade pelo tudo mais a que se referia Satélite, tive que dispensar. "Deixa para próxima, mestre, tô aqui acompanhado por uma branquinha carioca mesmo". Aí conversamos sobre futebol.
Noutro dia em Salvador, nerd jogador de RPG que sempre fui, resolvi assistir ao segundo filme do Senhor dos Anéis que recém havia estreado. Sabe a hora que o outrora grisalho Gandalf aparece onipotente, todo de branco? Um baianinho safado gritou Iemanjá.
Ainda sobre o Orixá do mar, tenho outra história. No Mercado Modelo, minha namorada fazia compras e eu bebia umas cervas num dos botecos de esquina opostos à entrada principal. Não foi preciso mais de duas garrafas para que eu ficasse amigo do sujeito atrás do balcão e começassemos a beber juntos. Papo vai, papo vem, descubro que baiano não gosta de chope e que o bartender se chama Franklyn e é petista. Conto, orgulhoso, minha jornada de quase 2 mil quilômetros dirigindo sozinho. E, para agradar meu interlocutor, enalteço o fim da viagem, passando pela ilha de Itaparica, com uma chegada a Salvador cruzando a Baía de Todos os Santos, numa adorável travessia de 50 minutos a bordo de um "ferry-boat". É aí que Franklyn, baiano bom de papo e com cerveja no sangue, revela sua maior segredo: "eu nunca andei de barco".
"Franklyn, por favor, o carioca aqui sou eu. Deixa a mentira e a malandragem para mim". Mas o pior é que ele me garantiu que era verdade. Franklyn explicou que não se sentia seguro no meio do mar e nem amarrado entrava num barco. Literalmente. Certa vez, contou meu amigo baiano, uns amigos filhos da puta lhe deram um porre e tentaram arrastá-lo para dentro de um barco. Franklyn, baixinho e roliço, recobrou a consciência num instante, deu uma pirueta e partiu em retirada dali. Mudou suas amizades, naturalmente. E era medo o que ele sentia? "Medo não, é apenas receio", assegurou ele. Mas Iemanjá não protege aqueles que se lançam ao mar? "Ela protege sim e protege muito bem. Mas somos tantos, que vai que ela pode se esquecer de mim", finalizou, muito bem, aliás, meu mais novo amigo baiano.