Nenhum dos dois poderia suspeitar que um dia haviam de se encontrar. Não naquela cidade, não com aquela música ensurdecedora, não com o dia já dormindo há muito. Não, era impossível, ela apagava seu cigarro e ele verificava sua carteira na intenção de beber a última da noite. De fato, só lhes restavam as ruas e seus postes cheios de luz do lado de fora da vida para que eles dessem por findo outro dia, outra dose, talvez no vazio de uma cama solitária.
Mas ela precisava de fósforos antes de qualquer coisa, e ocorreu de pedir ao rapaz na fila do bar por um pouco de fogo. Ele fez que não ouviu e perguntou o que ela queria. Fogo. Você tem fogo? Claro que ele tinha fogo, tinha praticamente um incêndio em cada dedo da mão, mas ela precisava de algo mais prático que o fogo dele, que só acenderia um cigarro por magia. Mas que diabo de festa onde ninguém fuma. Ele perguntou ao caixa após comprar sua cerveja se ele poderia lhe arrumar fogo, e alguns segundos após a fumaça tomava conta de cada alvéolo viciado da menina foguenta.
Bem, agora eles já haviam se encontrado, e para horror de seus pais, graças a seus vícios mais insalubres. Ele ofereceu um gole amigo enquanto tragava cinematograficamente o gosto de fumo cujo cheiro detestava desde moleque, e ela perguntou por seu nome. Leonardo, alto, e, pensando melhor, um cara simpático. Ele jura que viu um sorriso quando a menina, batendo as cinzas do cigarro, se apresentou como Tati, e apenas Tati. Como que sem muita coragem ou alguma idéia na cabeça para puxar um assunto como o outro, ficaram frente a frente meio palermas e mudos, soltando monossílabos referentes a música na pista e outras coisas menores, e o DJ salvou a vida deles então, que é para isso que deveriam servir os DJs, para salvar vidas. A melodia de ?Carolina? sorriu aos olhos de Tati, que diante da ainda pasmaceira de Leonardo e sua latinha de cerveja, disse toda menina que adorava aquela música e que ele deveria dançar com ela. Vem, vem logo.
Leonardo então acordou para a vida e percebeu que sim, Tati se derramara nele para girar pelo salão entre as luzes estroboscópicas bocejantes e uma rosa que nascia no rabo duma estrela cadente e segurava sua mão de cavalheiro como uma dama. O rapaz, que jamais havia chegado à conclusão de que era mais fácil qualquer menina se recostar nele por causa dos versos fanhos daquele Francisco do que pelos cabelos esvoaçantes dos acordes de Richie Sambora, fechou seus olhos e sentiu em seu corpo o pulso acelerado da menina que cantarolava só para eles os versinhos da canção. E ficou com um sorriso besta bem parecido com o dela ao fim da dança, as luzes se acendendo e o salvador deles encerrando seus trabalhos, e os dois de mãos dadas sendo advertidos de que a casa iria fechar, que fizessem o favor de passar no caixa para pagar suas contas e irem embora, mas continuaram por mais uns segundos desses que só são encontrados em fábulas ou poesias sorrindo-se mutuamente. O segurança tornou a avisar que eles estavam atrasando a vida dele, dessa vez com menos finura, e então eles foram cúmplices ao caixa e do caixa para o mundo com seus postes de luzes e ônibus coletivos que funcionavam mal durante a madrugada.
Antes que o mundo levasse embora aquele Leonardo (e vai que ele some na primeira esquina rumo ao Casaquistão?), ela disse que estava um pouco cansada e com medo de pegar seu táxi para casa sozinha. Leonardo percebeu que ela enlaçou o mindinho dela em seu indicador enquanto pedia que ele fosse sua companhia para voltar para casa e perguntou onde ela morava, pois que não poderia nem sonhar em pagar uma corrida de táxi com três notas de um real amassadas na carteira. Ela disse que morava perto, indicou a direção ao motorista e selou uma bitoca no guri, o puxando pelo braço para sentar-se junto dela rumo ao alvorecer.
Pela janela o tempo passava entre as lojas fechadas e cachorros que lambiam bêbados nas calçadas. Leonardo além de uma tatuagem agora tinha um coração gravado no peito.