Chovia, e como chovia. Uns pingos meio tristonhos, meio encharcados de adeuses, quase ébrios escorriam pelos céus noturnos da cidade enquanto eu deslizava madrugada afora numa ruela de paralelepípedos com as mãos nos bolsos da calça tentando manter meus últimos trocados a seco. Havia sido uma boa noite de cerveja e agora eu precisava dum canto quente e seco para deitar e ouvir a chuva do lado de fora me ninando quase silenciosamente, enquanto de olhos fechados eu imaginava o calor de um abraço necessário para aquela solidão.
A ruela parecia uma estrofe perdida no meio da cidade, com suas calçadas estreitas e janelas abertas. Eu podia ouvir meus pés rangendo por causa da água que havia ensopado minhas meias a cada passo, e o drama das novelas cotidianas que fluía de dentro de cada janela aberta diante da chuva e da noite que me acompanhavam por aquele trecho perdido entre o arcadismo e o parnasianismo, que após se acostumar ao esquecimento literário, acabou por urbanizar-se e ingressar no modernismo ainda que sob a forma de pastiche. Caminhava sem pressa e me preocupava mais em observar a chuva formar gotas que pingavam regularmente da ponta de meu nariz do que procurar uma marquise que me desse uma garantia mínima contra uma pneumonia ou outra disgressão pulmonar menor.
Em algum instante de minha caminhada percebi um vulto sentado numa das calçadas, em silêncio, observando alguma coisa na palma de sua mão. Talvez eu já estivesse perto de casa, mas o meu destino pouco importava então, o que me interessava era o caminho que me levaria a ele, e diminuí maquinalmente meus passos e até o ritmo de meus pensamentos que processavam os sons das janelas, as palavras que metrificariam sonetos naquela estrofe perdida, o número de paralelepípedos por onde rangiam meus pés afogados em saudades e cheirando a sono. Ah, era uma menina. Bem, ao menos usava uma espécie de vestido de festa um tanto quanto ornamentado, tinha mãos de menina e até cabelos de menina. Um poste de luz na calçada oposta a tornava cadente feito uma aliteração dentro daquela estrofe concretista, então me vi diante duma fadinha enluarada, pois que seu vestido etéreo e violáceo era adornado por um par de asas graciosamente celofanes e transparentes que gotejavam num decote que o vestido a permitia nas costas.
Parei perto dela para me certificar se tudo aquilo não era fruto de uma imaginação bôbada e tardia. Procurei acordar para conseguir voltar para casa e não dormir largado no meio do mundo que poderia estar chovendo, e acabei me dando conta que aquela cena realmente estava acontecendo, o casal da janela mais próxima relamente parecia estar gozando um amor profundo e a menina não deu a mínima para o estranho que a observava tortamente de pé ante a chuva, a luz elétrica e as gotas multicor que lhe caíam na palma da mão. Tentei construir um verso sobre aquilo tudo mas só consegui olhar o pedaço das costas que seu vestido me ofertava à vista e lembrar duma Nina que me perturbava o sono bissextamente.
O cansaço me obrigou a sentar ao seu lado, o que aparentemente não significou nada para ela, que preferia se concentrar nas gotas da chuva maquiada que lhe escorriam do rosto em direção a sua mão de menina em concha. Parecia uma arlequina abandonada no altar, esperando algo que lhe trouxesse de volta a sua graça. Fiquei ali sentado vendo a chuva escorrer feito melodia entre meus sapatos, pensando que devia ter feito a barba e gostando da sensação de ajeitar com as mãos meus cabelos desgrenhados na madrugada, enquanto o amor do casal às nossas costas parecia ter já adormecido e finalmente nos olhamos. Primeiro, estranhos, ficamos como dois cães sem dono se cheirando, procurando respostas ou ameaças ou novidades em nosso objeto-alvo. Seus olhos castanhos combinavam com o nariz de menina, e a maquiagem borrada a enriquecia com um olhar censurador de meretriz. Ajeitou inutilmente outra vez o cabelo que escorria junto com a chuva, talvez para melhor adivinhar o olhar que a julgava por trás daqueles óculos respingados. Talvez eu apenas estivesse bebido demais, mas juro que ela era bonita.
"Você tem cigarros ?", ela perguntou, e acrescentou que os seus estavam todos molhados. Após me estudar por um instante, baixou os olhos novamente. Procurei nos bolsos do casaco e encontrei um perdido, que alguém me havia pedido para passar para outro alguém mas que eu obviamente não havia o feito. Estava provavelmente mais enxuto que os dela, e o ofereci com alguma timidez. Que sorte a minha encontrar um príncipe encantado no meio dessa chuva, ela brincou, e eu ri, menos timidamente então. Ela acendeu o cigarro e eu emprestei meu casaco para ela se cobrir e fumar em paz, e ficamos vendo a chuva adormecer também. O cigarro foi breve, mas ela não devolveu meu casaco por isso, estava molhada e com frio, feito eu. Quase amanhecia. Perguntei se seu nome por algum acaso era Nina. "Quem me dera" foi a resposta, e ambos nos levantamos dali e tomamos nossas direções. Ela ficou com o meu casaco.
O amor às nossas costas aproveitava o anúncio do dia e renovava seus votos.