sábado, maio 10, 2003

Senta aí que eu vou contar história...

Contextualizando: no meu emprego atual há alguns momentos do dia em que minha função consiste em atender telefonemas. Não, não, eu realmente não me orgulho disso e sim, sim, isso me incomoda.

Na última quinta-feira, entre uns duzentos telefonemas, ligou uma senhora, nervosa, com aquela voz de velhos sem dentadura, chamada Dona Julieta - 82 anos, moradora do Jardim Iris, em São João de Meriti. Ela queria reclamar do posto de saúde de seu bairro que não queria lhe dar um remédio para sanar a dor que sentia no pé. Minha missão seria apenas anotar nome e telefone e depois despachar a pobre senhora. Para tornar esta maravilhosa missão mais agradável, escolho um ou outro interlocutor para uma breve prosa. Foi o caso de D. Julieta.

Tentei acalmá-la. Em vão. D. Julieta não parava de falar e de reclamar do tal posto e do prefeito de São João. Começou a me contar a história inteira do bairro, do posto e da dor no pé. Eu continuei pedindo calma e dizia que ia ver o que eu podia fazer. Ela continuava se lamentando e eu comecei a me arrepender de ter puxado papo com aquela senhora um tanto esclerosada, coitada. Mas aí ela começou a chorar. E chorava muito, muito. Ela dizia que a dor estava muito intensa, que não iria conseguir voltar para casa, que precisava do remédio e que não tinha dinheiro para comprar. Eu pedia calma, mas a velhinha só chorava e não me ouvia mais.

Eu sei, eu sei que não sou a pessoa mais sensível do mundo. Mas adoro velhinhas. Lembro logo da minha falecida avó - que morreu com quase 90 e bebia uma lata de Skol todos os dias. Portanto, a história de D. Julieta realmente sensibilizou-me e me incomodou. Mas o que eu poderia fazer?

A muito custo consegui convencer D. Julieta a ligar para sua filha, para que esta pudesse buscá-la no posto e levá-la para casa. Mas não consegui dormir bem naquela noite, preocupado com o destino da velhinha. Até compartilhei essa história com algumas pessoas.

No dia seguinte, mais ou menos no mesmo horário, lá estou eu atendendo telefonemas e D. Julieta liga novamente. A princípio não reconheci sua voz. Ela disse que queria fazer uma reclamação. Perguntei seu nome e ela disse: "nos falamos ontem, meu filho, você não se lembra de mim?".

Imaginem minha alegria. "Mas D. Julieta, a senhora está bem? Eu fiquei pensando em seu problema a noite inteira". Ela agradeceu, disse estar um pouco melhor, mas ainda sentia leves dores no pé, e ligava para reclamar do posto de saúde. Achei graça, ri um pouco e me vi novamente papeando com a velhinha.

Ela me contou que sua filha foi lá buscá-la, mas que ela se sentia revoltada com o descaso daquele posto de saúde. Eu enrolei, disse que ia ver o que podia fazer - praticamente nada, na verdade - e tentei desconversar. Então fiz a besteira de perguntar se ela iria passar o Dia das Mães com sua filha. Mais uma vez D. Julieta começou a chorar. Ela contou que sentia muitas saudades de sua mãe, que sua mãe já tinha morrido, que ela ia passar o Dia das Mães sem sua mãe, blá, blá, blá. Porra, D. Julieta, a senhora já tem 82 anos - pensei, mas não falei. Concluí que a velhinha é meio despirocada mesmo. Pedi calma, mandei aquele papo que todos morrem algum dia e que as recordações são extremamente importantes. A velhinha se acalmou e disse:

- Olha, meu filho, eu quero que você venha aqui na minha casa para pegar um presente para dar para sua mãe. Uma samambaia de garrafa.

Vocês não têm noção do trabalho que deu para convencê-la que eu não teria tempo de buscar o tal presente. Ainda assim fui obrigado a deixar a possibilidade no ar. Outro problema foi entender o que era a tal samambaia de garrafa. Não entendi. Depois de muitos beijos, promessas de orações por mim e pela minha mãe e "Deus te abençoe", D. Julieta desligou.

Fiquei feliz pela velhinha estar bem. Mas 10 minutos depois ela ligou de novo. Queria me pedir para arrumar um emprego para seu sobrinho. Aí minha preocupação já tinha sugado toda minha paciência. Nem dei muita trela.