Imagine-se num museu qualquer, apreciando uma exposição de um desses artistas ímpares do século XX, um Klee ou um Mondrian - cujas artes pretendiam romper as formas vigentes em busca de uma realidade mais elevada, uma coisa bem mística mesmo. Sua distância do quadro é tão próxima quanto a linha de segurança do museu permite. Uma obra como aquela merece toda compenetração que alguém como você, amante das artes, possa oferecer.
Então elas aparecem, as crianças. Estudantes de colégios públicos ou particulares, moradores de qualquer lugar da cidade*. Falam alto, correm pelos corredores, dão risada e até tropeçam em você. Algumas estão acompanhadas por pais que nem se esforçam para conter tanta energia. Outras, acompanhadas por professoras que até se esforçam, em vão. Podem aparecer também aqueles adolescentes, ainda mais incontroláveis que as crianças, repletos de hormônios púberes florescendo. Sua maior preocupação é contar sobre sua vinda ao museu aos amigos através do celular. Nos fins de semana é até pior: surgem aqueles casais que resolvem sair da enfadonha rotina matrimonial indo a um museu. Entre outros pecados, eles lhe pedem para tirar uma foto deles ao lado de um quadro. Você nega - é proibido, ora - e explica que o flash pode danificar a obra. Eles ainda insistem e, depois de mais uma resposta negativa, saem falando horrores de seus ancestrais e ainda acham outra pessoa, semelhante a eles, que topa tirar a tal foto.
Agora imaginem todas essas pessoas num museu no Rio de Janeiro, onde o povo é indiscutivelmente mal-educado. Sim, em geral os cariocas são porcos, jogam lixo no chão, ao trânsito não respeitam pedestres e agem como se fossem o centro do universo. Não adianta negar, eu também sou carioca.
A situação sugerida acima é comum. Em qualquer exposição - principalmente de grandes artistas e com respaldo de mídia - um público não exatamente entendido e admirador de artes será atraído. E aqueles, que gostam de apreciar desde os pormenores estéticos de uma obra, até suas intenções conceituais, serão prejudicados.
Muitas vezes não se admite tal incômodo. O discurso politicamente correto e hipócrita prevalece e seria vergonhoso para um professor universitário, por exemplo, reclamar do rapaz bronzeado comentado sobre o humilde tamanho do seio da Vênus de Botticelli. Não exatamente com essas palavras.
Uma das soluções para esse conflito talvez fosse criar uma espécie de apartheid cultural, separando sessões semanais de visita para cada tipo de público. A seleção - ou segregação, como preferirem - poderia ser feita através de um simples teste na entrada do museu ou se poderia até confiar na declaração do visitante. Ele diria: "eu sou apreciador tipo terça-feira, amo o Andy Warhol" ou "eu visitarei no domingo, nunca ouvi falar de Ingres".
A proposta do rodízio pelo tipo de público, porém, sofreria algumas críticas. A primeira seria feita pela direção do museu, com a compreensível alegação que o número de visitantes diminuiria. Afinal, um amante de artes não deixará de assistir a uma exposição somente pelo incômodo de outros visitantes menos contidos. Mas um curioso poderá cancelar sua possível visita por não poder escolher o dia mais apropriado. Além disso, ser considerado "menos apto a apreciar artes" não seria exatamente uma alcunha vista com simpatia por ninguém.
Outras críticas viriam de sociólogos e políticos engajados em áreas sociais. Eles alegariam que já é bem ruim viver em locais de segregação social e que uma cultural, além de lembrar práticas anti-semitas, poderia aniquilar ainda mais a auto-estima de uma população de baixa renda que tenta a todo custo não se enquadrar numa situação de exclusão. Deve-se incentivar o acesso à cultura, afinal, não condicioná-lo. Além disso, um primeiro contato com a arte, até mesmo tardio, pode fazer com que outrora alienados artísticos virem verdadeiros apreciadores no futuro.
Todas as críticas teriam lá usas razões e a idéia do rodízio, portanto, facilmente seria rechaçada.
A solução de consenso talvez fosse promover campanhas que educassem a população a bem se portar em locais públicos. Mas campanhas desse tipo só têm resultados a longo prazo e, mesmo assim, duvidosos. Da mesma forma que se faz com cigarros e cachorros, poderia-se também proibir conversas dentro de museus, cinemas e teatros - não são apenas os templos de artes plásticas que sofrem desse mal. Mas deveriam proibir mesmo, com punições e multas aos infratores! O que não está certo é continuarmos, os verdadeiros admiradores das artes, com esse discurso hipócrita de que não nos importamos. Devemos nos rebelar.
* Definitivamente não é um problema social. Visitei certa vez a casa de uma mulher na Rocinha - mãe solteira e empregada doméstica - que ganhava de sua patroa aquelas reproduções de obras de arte que vinham com a revista Caras. A mulher pregava todas as imagens pela parede da sala. Ela não sabia quem eram os autores, mas apreciava de forma invejável obras de Leonardo, Rafael, Ticiano, Miguel Ângelo, El Greco, Rubens, Rembrandt, Monet e outros. Pelo pouco que conversamos, ela me pareceu preferir os pintores renascentistas.